quinta-feira, fevereiro 24, 2011

A saúde mental dos Portugueses - uma reflexão livre

Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no Público, 2010-06-21



Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência, urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos, criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100 casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa, deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos

ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.

Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual, tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês, enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à actividade da pilhagem do erário público. Fito com assombro e complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando já há muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente.

Pedro Afonso

Médico psiquiatra

O Modelo Civilizacional Europeu e o Sistema Nacional de Saúde

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

A cultura e a arte na educação

Com este artigo não pretendo teorizar sobre estudos e postulados; pedagogias e defensores da arte no sistema de ensino; ensaios sobre artes maiores e artes menores.
Pretendo sim iniciar uma reflexão sobre a necessidade da arte e cultura como veículo de enriquecimento do cidadão de amanhã. A arte como experimentação da liberdade de ser, de pensar por si, de se afirmar, de argumentar, de se impor pela razão e pela palavra e não pela força e pelo punho.
Falo da arte e cultura nas escolas para além das visitas de estudo a estruturas artísticas (museus, palácios) e eventos culturais (teatros infantis). Falo da arte e cultura vivida dentro da escola, como factor de orgulho individual da criança e integração social das suas diferenças.
A arte e cultura nas escolas como práticas de desenvolvimento e descoberta individual – a obra literária, a escultura, a pintura, a retórica, os grupos de teatro escolar, os grupos de música da escola.
Vivemos uma era onde a tecnicidade é um factor preponderante e inultrapassável, mas a excelência da educação – como formador de um bom cidadão, só é atingida por uma educação nas artes, no desporto e na filosofia.
A cultura grega, berço cultural da civilização ocidental, acreditava que a sua cidade – estado iria tornar-se a mais forte se cada menino desenvolve-se integralmente as suas aptidões.
Na escola grega, “ o homem forma-se segundo um crescente domínio de si, pela libertação de seus instintos, desejos e paixões, que devem ficar submetidos à razão. Para alcançar tal ideal propõe a ginástica, para desenvolver o corpo (nós estamos a caminho de reduzir o empenho no desporto escolar), e a música, com a leitura e o canto das obras dos grandes poetas, para o espírito (nós com uma estratégia de colocar a filosofia em agonia, o ensino da história desconexada de uma mensagem civilizacional e o ensino minimalista do português e dos seus vários autores criando uma perda de identidade como povo). Esse programa educativo tratava de desenvolver no homem a qualidade da temperança e que implicava um perfeito domínio de si, aliado à sabedoria.”
Esta escola que espelha um ideal de formação do homem em suas várias esferas (social, politica, cultural e educativa), a Paidéia – esta palavra não pode ser traduzida como educação, pois significa mais do que isso, significa também cultura, instrução e formação do homem. É colocar o homem a par de todo o conhecimento necessário para a harmonia consigo próprio e com a comunidade ao seu redor.
A encruzilhada civilizacional que vivemos, exige processos críticos, criativos e humanistas, só possível com uma educação completa que forma cidadãos completos, para agentes criadores e condutores de mudanças. O homem como centro mas ao serviço da comunidade e da sua variedade, é o desafio que a escola do séc.XXI deve vencer, sem descorar o conhecimento técnico e científico, também ele carente de imaginação, criatividade, liberdade e razão.
Precisamos também de uma escola que reintroduza os valores produtivos do passado; valores de trabalho, esforço, mérito, persistência, objectivos e metas individuais e colectivas.
Precisamos de uma nova cultura de identidade - não saudosista nem renegada do nosso passado mas uma identidade global, dando e tomando conhecimento e partilha, com e do outro, com integração e transmissão intergeracional, incentivadora de produtos culturais (textos, esculturas, peças de teatro, musicas, etc.) e que aceite sempre a dúvida e a critica, mas também a decisão e a coragem, para irmos evoluindo.
Estarão preparados os currículos de cada nível de ensino, de formação do magistério primário e das escolas superiores de educação, para atingirmos este objectivo? Terá a lógica corporativa dos vários agentes educativos, espaço para pensar e agir abnegadamente a bem geral, sem ser só na defesa de estatutos, regalias e vencimentos? Estará a comunidade educativa pronta para exigir uma nova arquitectura do aparelho público responsável pela educação dos Portugueses?